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NEUROURBANISMO – PENSANDO A CIDADE SOB A PERSPECTIVA DA INFÂNCIA

Por Arquiteta e Dra. Raquel Daroda



Raquel Daroda é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS). Pesquisadora com foco nas áreas de neuroarquitetura, neurourbanismo, cidade e infância, políticas públicas para a primeira infância, tecnologia e espaços públicos e cidade educadora. Leia a bio completa no final deste artigo.
Raquel Daroda é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS). Pesquisadora com foco nas áreas de neuroarquitetura, neurourbanismo, cidade e infância, políticas públicas para a primeira infância, tecnologia e espaços públicos e cidade educadora. Leia a bio completa no final deste artigo.

Neste artigo vamos explorar a interface entre o neurourbanismo e o planejamento urbano a partir da perspectiva da primeira infância. Como as cidades podem ser desenhadas de maneira mais inclusiva e promissora para o pleno desenvolvimento infantil? Como o planejamento urbano pode trabalhar os requisitos e diretrizes buscando cidades e espaços públicos mais amigáveis para as crianças? Proponho aqui uma reflexão inicial sobre este tema tão extenso.


O ambiente urbano exerce papel vital no desenvolvimento das crianças, especialmente nos primeiros anos de vida, influenciando aspectos neurológicos, físicos e sociais. Recentemente, as áreas da neuroarquitetura e do neurourbanismo têm ganhado destaque ao demonstrar, por meio de evidências científicas, como o espaço impacta diretamente o cérebro em desenvolvimento (Sternberg, 2009; Ellard, 2015). Sob essa ótica, emerge a provocação de repensar as cidades a partir da perspectiva de 95cm — altura aproximada de uma criança de três anos. Este artigo traz uma provocação, um convite à reflexão sobre como neurourbanismo e a “perspectiva de 95cm” podem nortear o espaço urbano para garantir que as cidades promovam a interação e o desenvolvimento infantil de forma segura e inclusiva.


1 - Fundamentos da Neuroarquitetura e do Neurourbanismo

A neuroarquitetura baseia-se na investigação de como ambientes construídos afetam o cérebro humano. A neurociência do espaço urbano, ou neurourbanismo, por sua vez, investiga como aspectos do ambiente urbano — como morfologia, estímulos sensoriais, segurança ou mobilidade — influenciam as emoções, a cognição e a saúde mental.


De acordo com Sternberg (2009), a exposição a ambientes desagradáveis ou estressantes pode ativar o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, prejudicando o desenvolvimento das funções executivas (atenção, autocontrole, memória de trabalho), fundamentais nos primeiros anos de vida (Center on the Developing Child, Harvard University, 2011). Outros autores também destacam que a arquitetura e o urbanismo podem fomentar conexões neuronais benéficas quando proporcionam espaços seguros, verdes, estimulantes e socialmente integrados. A inclusão da neurociência nas etapas de planejamento amplia a capacidade de criar cidades com impacto positivo no desenvolvimento infantil.


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A perspectiva de 95cm revela desafios e oportunidades não percebidos por adultos, como obstáculos à mobilidade, falta de estímulos sensoriais positivos, insegurança no trânsito e escassez de espaços lúdicos.


Segundo a rede Urban95, programa da Fundação Bernard van Leer que incentiva políticas públicas para a primeira infância, ruas acessíveis, calçadas contínuas, mobiliário em escala, sinalização divertida e natureza acessível são características essenciais do território pensado para a infância. Aldo van Eyck, arquiteto holandês, também defendia, desde o pós-guerra, que a cidade deveria ser um “playground urbano” onde toda esquina fosse potencial para o brincar — espaço de convivência, exploração e criatividade.

 

Assim, pensar o projeto urbano e as cidades sob perspectiva de 95cm traz ênfase a elementos como:

  • Segurança viária (velocidades reduzidas, travessias protegidas)

  • Visibilidade e clareza de trajetos

  • Escala adequada de mobiliários urbanos

  • Acessibilidade sensorial e cognitiva

  • Natureza e espaços de contato com ambientes naturais


Assim, a neuroarquitetura fornece diretrizes para criar espaços que não só acolhem as crianças, mas também promovem seu desenvolvimento integral, respeitando as suas necessidades, incentivando a exploração, o aprendizado autônomo e o desenvolvimento saudável.

Tais medidas beneficiam não apenas as crianças, mas toda a coletividade urbana, favorecendo autonomia, socialização e saúde pública. Elementos como luz natural, cores, texturas, sons, formas e materiais ativam áreas do cérebro relacionadas ao bem-estar, ao conforto ou, em contrapartida, ao estresse e à insegurança. Estudos mostram que o ambiente pode modelar a resposta ao estresse: lugares ruidosos, caóticos, sem contato com a natureza, ou inseguros ativam o eixo fisiológico do estresse nas crianças, elevando cortisol e prejudicando a aprendizagem, atenção e a autorregulação emocional, que são competências cruciais para o desenvolvimento nos primeiros anos de vida.


Nos projetos de arquitetura para as crianças, a neuroarquitetura é essencial para garantir que cada espaço não apenas atenda às necessidades funcionais, mas também inspire as crianças a explorar, se comunicar e se sentir parte do ambiente. Assim, a neuroarquitetura fornece diretrizes para criar espaços que não só acolhem as crianças, mas também promovem seu desenvolvimento integral, respeitando as suas necessidades, incentivando a exploração, o aprendizado autônomo e o desenvolvimento saudável.

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Colin Ellard (2015), referência no campo da neurociência, estuda como a configuração urbana impacta a experiência psicológica dos usuários. Ele demonstra que bairros com abundância de áreas verdes, baixa poluição e facilidade de deslocamentos seguros promovem sensação de pertencimento e engajamento emocional.


O ambiente pode gerar estímulos positivos quando oferece oportunidades de aprendizado, interação social, diversão e liberdade. Portanto, a combinação de neuroarquitetura e neurourbanismo propõe que o planejamento dos espaços urbanos deve considerar, conscientemente, os efeitos fisiológicos e psicológicos sobre o cérebro em desenvolvimento, aqui pensando sob a perspectiva da infância.


2 - Planejamento Urbano amigável para a primeira infância

Incorporar a primeira infância no planejamento urbano requer, além do interesse pela pauta, políticas integradas e intersetoriais. Se pensarmos em “cidades amigáveis para as crianças”, segundo a UNICEF e o Instituto Alana, estamos tratando da garantia dos direitos desde o acesso à moradia, mobilidade ativa, até espaços de lazer e convivência.


Sob a perspectiva do neurourbanismo, pensando na relação entre cidade e infância, podemos destacar algumas diretrizes capazes de favorecer a construção desse vínculo entre a experiência das crianças e os espaços públicos das cidades:

  • Espaços verdes e de brincar promovem habilidades cognitivas e regulação emocional.

  • A mobilidade ativa e independente, através de ruas calmas, ciclovias protegidas e calçadas largas, estimulam a interação com o espaço e a autonomia.

  • A proximidade de serviços essenciais como creches, escolas e praças, reduzem o tempo de deslocamento fortalecendo vínculos familiares e sociais e estimulando formas sustentáveis de mobilidade.

  • A participação infantil no planejamento urbano é parte fundamental do processo; a escuta ativa das crianças e atividades com metodologias específicas possibilitam a participação das crianças na construção de espaços urbanos mais amigáveis para a infância.

  • Estratégias que explorem a experiência sensorial através de estímulos ricos em cores, formas, sons e aromas, promovem aprendizagens diversas e contribuem para o desenvolvimento integral da criança.


Francesco Tonucci, com “La Città dei Bambini”, defende que crianças sejam ouvidas nas decisões de planejamento urbano, em atividades lúdicas especialmente pensadas para captar suas percepções e necessidades. Isso agrega criatividade, autenticidade e um olhar sensível aos projetos. Planejar cidades sob o olhar infantil é construir ambientes urbanos que respeitem necessidades de cuidado, interatividade através do lúdico e a cidadania e cuidado com o meio ambiente desde cedo.



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Pensando a partir de um exemplo prático, relacionando as diretrizes citadas anteriormente, um adulto ao caminhar por uma calçada estreita e com carros em alta velocidade, enxerga a situação sob a sua perspectiva. Para uma criança, o ruído, a velocidade aparente dos carros, a dificuldade em ser vista por motoristas e a falta de elementos lúdicos tornam o ambiente angustiante e inibitório. O mesmo para a oportunidade de orientação, uma cidade desenhada para crianças exige trajetos visíveis e facilmente compreendidos. Isso significa calçadas contínuas e sem obstáculos, sinalização atraente, cores, símbolos e mapas em linguagem acessível. Trajetos claros promovem orientação espacial, aumentando a segurança, confiança e exploração dos espaços pelas crianças.


A acessibilidade sensorial envolve criar ambientes ricos em experiências que envolvam todos os sentidos: visão (formas, cores, movimento), audição (sons suaves, ausência de ruído excessivo), tato (texturas dos pisos e do mobiliário), olfato (flores, árvores aromáticas) e até paladar (hortas urbanas). Já a acessibilidade cognitiva implica desenhar espaços que a criança compreenda e navegue sozinha: usar símbolos universais, placas ilustradas ― facilitando o entendimento mesmo sem saber ler ― e criar roteiros com pontos de referência visual (murais, esculturas, vegetação temática).


3 - Cidade, Natureza e Infância

Sentar na grama, observar insetos, subir em árvores, brincar com areia ou água são experiências que promovem plasticidade cerebral, integração sensorial e hábitos saudáveis, essenciais para o desenvolvimento humano integral. Importante reforçar também que a experiência reforça o aprendizado e aproxima as crianças do grande ecossistema no qual estamos inseridos. Essa consciência contribui para um futuro mais sustentável, construído por crianças que desenvolveram uma relação afetiva com a natureza urbana através do livre brincar. Parques e praças acessíveis e bem distribuídas são cruciais. O brincar livre é reconhecido pela ONU como direito fundamental, por favorecer não só o corpo, mas também empatia, criatividade e resiliência (UNICEF). O ideal é que todas as residências estejam a menos de 400m de uma área verde.


A relação entre crianças e natureza vai muito além da mera presença de áreas verdes nas cidades. Trata-se de possibilitar experiências significativas e regulares, onde o ambiente natural serve como cenário e matéria-prima para a vivência, a aprendizagem ativa, a descoberta e o encantamento. Segundo Janet Loebach et al. (2021), não basta contemplar a natureza; é fundamental experimentá-la de forma direta. Isso envolve tocar a terra, escalar, observar insetos, correr na grama, sentir o cheiro das folhas, ouvir os sons do vento e da água — estímulos que alimentam a curiosidade e a compreensão do mundo.


A experiência da vivência com a natureza promove conexões sensoriais ricas e múltiplas, favorecendo o desenvolvimento integrado dos sistemas cognitivo, emocional e motor. Gazzaniga (2018) e Cozolino (2014) destacam que ambientes naturais oferecem diversidade sensorial e imprevisibilidade controlada: uma árvore pode abrigar brincadeiras diferentes a cada dia, uma poça d’água pode ser fonte de criatividade e socialização, pequenas trilhas ensinam orientação e noção de espaço.


A neurociência demonstra que experiências na natureza regulam níveis de estresse, promovendo o equilíbrio emocional e fortalecendo vínculos afetivos — tanto entre as crianças, quanto entre elas e seus cuidadores. Além disso, o contato com a natureza propicia sensação de pertencimento ao mundo e consciência ecológica desde cedo. Crianças que têm oportunidades autênticas de explorar jardins, hortas, bosques, ou mesmo pequenas praças arborizadas desenvolvem maior senso de responsabilidade e cuidado pelo meio ambiente.


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4 - Conclusão

Refletir sobre a cidade das infâncias, a partir da perspectiva do neurourbanismo e da neuroarquitetura –– é um exercício transformador. Esse olhar traz à tona a urgência de repensarmos nossos espaços públicos, infraestruturas e políticas urbanas, colocando a infância também no centro das decisões. Quando projetamos cidades que priorizam segurança viária, visibilidade, clareza de trajetos, acessibilidade sensorial e o contato com a natureza, estamos não apenas promovendo o desenvolvimento integral das crianças, mas também construindo ambientes mais inclusivos, saudáveis e equitativos para toda a sociedade.

 

A importância desse tema reside no reconhecimento de que o espaço urbano não é neutro: ele pode limitar ou potencializar oportunidades, afetar a saúde física e emocional e moldar relações sociais desde os primeiros anos de vida. Autores e experiências internacionais demonstram que cidades mais acolhedoras para crianças beneficiam todas as faixas etárias e promovem um senso de pertencimento e bem-estar coletivo.


Estamos dispostos a mudar nossa forma de ver e planejar as cidades para acolher melhor a primeira infância? Como os estudos de neurourbanismo podem efetivamente pautar este debate? De que maneira políticas públicas e práticas profissionais podem se alinhar à ciência para garantir cidades mais humanas e saudáveis para a infância?


Esses questionamentos convidam à continuidade do debate, à pesquisa interdisciplinar e à ação conjunta de gestores, profissionais de projeto, famílias e comunidades. Avançar nesse caminho é fundamental para que possamos, no futuro, construir cidades verdadeiramente inclusivas, que respeitem e protejam o potencial humano desde os primeiros passos – afinal, como será o futuro de uma cidade que cresce a partir do olhar de suas crianças?



Referências ALANA, Instituto; UNICEF; Fundação Bernard van Leer. Cidades Amigas da Criança: guia de indicadores. São Paulo: Instituto Alana, 2020. Disponível em: urban95.org. Acesso em: 05 maio 2025.

COZOLINO, Louis. The Neuroscience of Human Relationships: Attachment and the Developing Social Brain. 2. ed. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 2014.

ELLARD, Colin. Places of the Heart: The Psychogeography of Everyday Life. New York: Bellevue Literary Press, 2015.

GAZZANIGA, Michael S.; ALWAN, Abeer. The Cognitive Neurosciences. 6. ed. Cambridge: The MIT Press, 2018.

HARVARD UNIVERSITY. CENTER ON THE DEVELOPING CHILD. Building the Brain’s “Air Traffic Control” System: How Early Experiences Shape the Development of Executive Function. Working Paper nº 11. 2011. Disponível em: developingchild.harvard.edu. Acesso em: 05 maio 2025.

LOEBACH, Janet et al. Children’s Mental Health and Nature: A Systematic Review and Meta-Analysis. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 24, 2021.

ONU-Habitat. Streets for Kids: Designing Cities and Streets for Children. Nairobi: ONU-Habitat, 2021.

STERNBERG, Esther M. Healing Spaces: The Science of Place and Well-Being. Cambridge: Harvard University Press, 2009.

TONUCCI, Francesco. La città dei bambini: Un modo nuovo di pensare la città. Roma: Edizioni Chiarelettere, 2017.


Nossa colunista:

Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS), Especialista em Iluminação e Design de Interiores, Especialista Docência e Metodologias para o Ensino Superior (IPOG).


Docente convidada onde ministra aulas de pós-graduação nos cursos Master em Neuroarquitetura e Master em Arquitetura Comercial (IPOG). 


Criadora da plataforma Cidade Mini Alegre @cidademinialegre - iniciativa que tem diversos projetos e metodologias inovadoras com o objetivo de construir um novo olhar para a relação entre a Cidade e a Infância.


Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter campus Porto Alegre e Canoas (RS), onde também coordena a Extensão Universitária do curso.


Supervisora do Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo (EMAU-UniRitter) e Coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo no campus Canoas. 


Pesquisadora com foco nas áreas de neuroarquitetura, neurourbanismo, cidade e infância, políticas públicas para a primeira infância, tecnologia e espaços públicos e cidade educadora - reconhece que o desenvolvimento de metodologias inovadoras pode contribuir para a construção de um mundo melhor para todos. Instagram : @raqueldaroda_arquitetura

 
 
 

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